sábado, 31 de julho de 2010

'Uma Noite em 67'


Não assisti ainda ao documentário sobre o Festival da Record de 1967, de Ricardo Calil e Renato Terra, que estreou ontem nos cinemas aqui em São Paulo.
Um grande amigo cineasta foi à pré-estréia no Rio e me ligou entusiasmado; estava emocionado com os depoimentos dos protagonistas Chico, Caetano, Edu, Gil.... afinal, que fotografia incrível aquela - um momento especialíssimo na música popular brasileira, independente de regime político, religião, economia ou futebol vigentes... falo da música.
No entanto, acho curioso que em todas as reportagens e comentários nos jornais fala-se muito da emoção intensa, da rivalidade acirrada que se instaurou entre as torcidas (levada quase às últimas consequências), do clima à la "gladiadores", de toda aquela guerra, enfim, do 'entorno' que abarcava a disputa musical em si. Um bom exemplo disso é a famosíssima cena de Sérgio Ricardo, quebrando o violão e bradando "vocês ganharam, vocês ganharam!!". depois de atacar os primeiros acordes e tentar em vão entoar "Beto bom de Bola", tamanha a vaia ensurdecedora com que o público lhe saudaria naquela noite.
Falam do cunho político que havia no ar envolvendo todo o evento, das roupas extravagantes e desafiadoras de Caetano e Gil, Rita Lee e os Mutantes, do bom-mocismo de Chico, da sofisticação de Edu e Marília Medalha.
Todos sabemos da barra pesada que aquele pessoal enfrentava na época, inclusive naquele ano específico ( meus pais mesmo contam histórias inacreditáveis) e que, infelizmente, precedia algo ainda pior, o Ato Institucional Nº5, o AI-5 ( 1968).

Porém, sob a ótica musical, artística, faltou falar de um protagonista fundamental, que nenhum dos jornais mencionou devidamente, nenhum.

"A última noite do Festival de Música Popular Brasileira de 1967 foi um desses raros momentos que condensam e catalisam as forças vivas de toda uma cultura (...) um caldeirão de elementos díspares numa rara e irrepetível sinergia: o berimbau e a guitarra elétrica" Folha de São Paulo.

É verdade. Mas faltou mencionar que o grande responsável pelas guitarras elétricas em "Alegria Alegria" e "Domingo no Parque", assim como pelos elementos claramente eruditos contidos nos arranjos destas canções foi Rogério Duprat.
Ele foi o amálgama, aquele que deu a "roupagem" daquelas canções, e posteriormente à própria Tropicália ( essa afirmação não é minha; Caetano e Gil já o disseram várias vezes).
Seus arranjos, absolutamente imprevisíveis e criativos, juntavam Stravinski com guitarra, berimbau com Stockhausen, mas nunca aleatoriamente, tudo fazia sentido. Rogério foi, sim, um dos personagens principais daquele festival e do que viria depois, como desdobramento desse.

"Colocar guitarra elétrica na MPB era de direita. Os artistas de raiz, contrários à guitarra elétrica, eram de esquerda. Houve um radicalismo, um clima de Fla-Flu Musical", Estado de São Paulo.

Quando Jimmi Hendrix usou sua Fender Stratocaster em pleno Woodstok ( 1969) para genialmente protestar contra a guerra do Vietnam, tocando o Hino Nacional Americano todo entrecortado por sons de bombas simuladas no instrumento, a guitarra naquele momento não representou nem um pouco o status de simbolo do "Imperialismo", mas sim seu mais ferrenho opositor.

Na minha opinião, à sua maneira e guardadas as devidas proporções, Duprat faria o mesmo ao reunir patrícios e argentinos (Beat Boys) para tocar música brasileira, usando guitarras elétricas e orquestra sinfônica em plena repressão, numa época em que 'internet' era, quanto muito, um fetiche de filme de ficcão científica (portanto não podendo escancarar "globalização" nenhuma). Isso não era para qualquer um.
Entendo perfeitamente que à primeira vista, aos olhos e ouvidos daquele público, qualquer coisa made in USA não fosse bem aceita (pudera!), mas Rogério mirava muito além de uma rasa apologia ao imperialismo Ianque. Muito pelo contrário. Era um ato bastante corajoso, contestador, mas sobretudo bem humorado em meio àquele clima de guerra. O maestro, afinal, era um tremendo gozador! Apenas com arranjos e postura artística mostrava o quão era possível esparramar-se por universos tão díspares, dialogando de forma original e provocativa, sem no entanto deixar de ser brasileiro ou coerente. A arte então transgredia e se sobrepunha a tudo, inclusive nacionalidades.

****

Esse teor agregador e ao mesmo tempo desafiador do Duprat me lembrou um outro fato, atual e fantástico (embora esse não tenha nenhuma relação com o festival de 1967)- Daniel Barenboim e Edward Said, um judeu e um palestino, um maestro e outro intelectual, dois expoentes de peso em suas respectivas áreas, juntaram-se para criar a West-Eastern Divan Orchestra que, através da música, coloca judeus e árabes tocando sob a mesma pauta, lado a lado. Impensável?
E alguém ainda duvida de que a música tem, além de tudo, o poder intrínsico de elemento transformador, revolucionário e evolutivo, mas sorrateiramente encrustado apenas em melodias, acordes, arranjos e versos?
Ou como diria Guimarães Rosa: "o Diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto!"
Vivam os arranjos, melodias, acordes e versos de Rogério Duprat, Jimmi hendrix, Baremboim e Said.

5 comentários:

rogerio santos disse...

Chico, parabéns pela postagem, talvez a mais bela que já li aqui no blog... assino embaixo das tuas considerações...(das que conhecia, pq a orquestra que une judeus e palestinos, essa não...).

Deus fez o mundo em 6 dias, descansou no sétimo... a partir do oitavo dia, começou a desenvolver acordes, melodias, poesia... o que faz até hoje através de alguns "cavalos"...rs

;-)

Natalia Magno disse...

Poxa Chico, depois de tudo o que vc disse nesse post, deu mais vontade ainda de assistir ao documentário!

E quanto ao cd novo, já tem data pra sair?

Beijo!

Eduardo Mercuri disse...

Grande Aula, Valeu Chico!

Chico Pinheiro disse...

Olá Rogério, Natalia e Eduardo.
Pois é gente, ainda não tive tempo de ver, mas se possível consigo em breve!
Alguém já viu? Que tal?
Abs,
C.

pituco disse...

chico,

chego aqui, sempre, na carona do poeta e amigo virtual, rogério santos...

postagem piramidal...à época, eu tinha sete anos, portanto de quase nada me recordo...agora, destacar-se sr.rogério duprat é oportuno e pertinente...e que arranjos, não é verdade?

abraçsons