" O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos."
Relendo recentemente a poesia de Manoel de Barros foram me ocorrendo alguns pensamentos assim a esmo, que depois de descansarem um tanto voltaram a despertar furtivamente em minha cabeça.
É que lendo um bocado aqui e acolá, fui me enternecendo a cada palavra, cada verso - não só pelo engenho do poeta em construir passagens profundas, singelas, ou por vezes pinceladas com finas 'tiras' de humor - mas desta vez o que mais me entreteve foi reparar a coexistência pacífica e certeira entre a regionalidade e universalidade de sua obra.
O matogrossense Manoel versava partindo daquela pequena formiga recortando a folha da roseira, as aves em revoada, os peixes no rio, as veias da terra arada, enfim, os detalhes escondidos em cada pedaço de chão, tudo era matéria prima para a 'arquitetura' de sua arte. Nas palavras dele: "As coisas que não levam a nada têm grande Importância. Cada coisa sem préstimo tem seu lugar na poesia ou na geral."
E basta um gaúcho, carioca, moçambicano ou lisboeta afeitos a um 'causo' bem contado deitarem os olhos sobre os poemas de Manoel para descobrirem a beleza neles, compreenderem e se comoverem como eu, paulistano longe de ser um expert em Pantanal, me comovi.
Enfim, a idéia que me ocorreu é a de que estamos, pouco a pouco, ficando literalmente 'anestesiados' às sutilezas que se apresentam à nossa frente, no dia-a-dia, como pedras preciosas tão óbvias e reluzentes que simplesmente não enxergamos.
Queremos ver de tudo mesmo que muito pouco minuciosamente (quanto mais e mais rápido, melhor!). Não é muito atraente repararmos com atenção só do 'pouquinho' que está à nossa volta... afinal, na corrida desenfreada da chamada fast-life ( em alusão à fast-food), como podemos prestar atenção aos detalhes? Um sorriso em uma situação momentânea engraçada, um franzir de testa num bate-papo inusitado, um comentário interessante e inesperado... tudo pode se perder, indo embora com o vento... e a vida segue.
Pois são esses, precisamente, os objetos daqueles cuja matéria prima é a pedra preciosa escondida mas reluzentemente óbvia e ululante!
São os sabidos que reparam nessas pedras de cada anel por trás da mão que as ostenta... em cada palavra; verbo, preposicão, adjetivo ou mesmo artigo por trás de uma frase ou parágrafo ... em cada tensão de cada acorde por trás de uma certa canção, em cada cantinho de uma paisagem, por mais escondido que seja.
João do Vale era assim, Guimarães Rosa idem. Jobim, Chaplin, Monk, Machado, Gershwin, Niemeyer, Calder, Garoto ... tantos outros foram assim e seguramente nosso poeta Manoel de Barros faz bonito nesse time - arquitetos da sutileza, tudo em perspectiva.
E viva a formiga, caro Manoel!
4 comentários:
É por essas e outras que é bom conversar, ainda que por pouco tempo, com o senhor, que, afinal, não pensa apenas como grande músico, mas como um amante da literatura, já que as duas coisas andam sempre tão juntas.
Um grande abraço!
Augusto
Com certeza....
Pra isso também servem os artistas. Antenas da humanidade.
Cada um com sua função!
abraço...
Oi Chico, eh verdade, dizem que as pessoas que lidam com arte, enxergam o mundo diferente...
Eu moro no interior, vou sempre pra capital, vejo uma diferença enorme,são dois mundos diferentes, a começar pelo comportamento das pessoas...
beijos!
Giana
Texto fantástico Chico, infelizmente a ótica urbana é focada, e nos obriga a menosprezar o cotidiano, seja ele qual for. Dizia Krishnamurti, um grande filósofo indiano "...é necessário estarmos 100% presente e 0% pensante para experimentarmos a vida". Acredito que esta experiencia do autor da poesia, assim como sua percepção da magnitude destes versos criou um "despertar" para uma vida que está aí, perto de mim e de todos nós, bastando somente ver, sentir, e viver.
Abraços
Carlos Paciencia
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